Quando ele chegou às concessionárias, os carros usavam calhas no teto, quebra-vento e nem pensavam na ergonomia – o importante era acomodar o motor, os passageiros eram apenas um detalhe. Mas foi vítima de bullying: “botinha ortopédica” diziam nas suas costas. Mas quem conhecia o carrinho se surpreendia: “que carrão por dentro, espaçoso!”. E as soluções ergonômicas? Acionadores na altura do volante, posição de dirigir elevada, visão em todas as direções. Numa época em que aerodinâmica era coisa de aviação e, vá lá, Fórmula 1, ele inovava dispensando um limpador do para-brisa e maçaneta externas. Sua frente também era mais arrendondada que os chapadões contemporâneos. E era o único que aceitava ter quatro portas sem parecer ridículo, em tempos em que o consumidor se preferia sofrer para chegar ao banco traseiro a ter configuração de “Zé do Caixão”.
Não é à toa que durou tanto. O Uno, o original, foi daqueles carros que revolucionaram o mercado em sua passagem por aqui. Mesmo vencendo preconceitos. Há que se lembrar que nem mesmo essas virtudes apagam seus pontos fracos. O motor áspero e famoso pelo consumo elevado de lubrificante, era um deles. O outro é o câmbio, que teimava em não engatar as marchas mesmo com o pedal da embreagem no para-choque. A imagem um tanto arranhada da Fiat na época de sua estreia (Fui Iludido Agora é Tarde era conhecido até pelas nossas avós) também pesou contra.
Mas o bom projeto superou essas dificuldades. O Uno chegou em 1984, mas só virou gente grande em 1990, nesse caso por uma sacada de mercado que antecipou a estratégia ousada que fez da Fiat a marca mais vendida do Brasil uma década depois.
Aproveitando uma mudança na legislação para ajudar o empresário brasileiro João Gurgel a vender seus BR-800 com motor de 0,8 litro, a Fiat sacou um motor 1.0 e criou o Mille, o segundo “nascimento” do Uno. Como era leve e ainda mais moderno que seus rivais, o hatch assumiu com tranquilidade o papel de “popular”. Daí foi só ver o desespero de suas rivais, pegas no contrapé. A Volkswagen só conseguiu responde em 1984 com o Gol 1000. Chevrolet e Ford, coitadas, inventaram versões populares do Chevette (Júnior) e Escort (Hobby), carros que não se encaixavam nessa categoria.
Aos poucos, a marca foi corrigindo algumas deficiências de nascimento: evoluiu o motor, trocou o acionamento da transmissão e melhorou o acabamento do carro. Mesmo assim, não botou fé no seu produto a ponto de, em 1996, lançar o Palio, projeto desenvolvido pela filial brasileira, para substitui-lo. E lá veio o terceiro nascimento do Uno, para surpresa da própria marca.
Mesmo com o Palio, o Uno seguiu vendendo bem, com o papel de carro de entrada, barato e pau para toda a obra. Uma ironia para um carro que surgiu com dúvidas a respeito da sua confiabilidade.
E assim o Uno atravessou o início do século 21 até que a Fiat criou o novo Uno, projeto que se não revolucionou como seu antecessor, foi uma bela sacada de marketing. Mas é injusto dizer que a falta de airbags e ABS mataram o velho Uno. Ele já andava na UTI por uma boa e simples razão: o consumidor evoluiu.
O Uno do passado já não é mais aquele campeão de vendas de antes. Mesmo sendo o mais barato carro do País na maior parte do tempo, o Mille representa apenas 50% do que vende o novo Uno. Ou seja, as pessoas já não o viam como única opção de carro barato. Vale mais gastar um pouquinho e ter alguns mimos, além de um design atual. Se não fosse assim e o Uninho ainda vendesse horrores, certamente o investimento para fazê-lo receber os dois equipamentos de segurança poderia valer a pena.
O Mille está morto, viva o Mille!
A série Grazie Mille chega para fechar o longo ciclo do modelo. Traz itens que nem se sonhava no original, como ar-condicionado, direção hidráulica e vidros e travas elétricos. Também oferece rádio com CD/MP3 e até conexão com Bluetooth além de outros adereços estéticos para identificá-lo nas ruas. Serão 2 mil carros vendidos por um preço um pouco mais salgado, de R$ 31.200, uns 50% mais que o Mille comum.
É verdade que o Mille deveria ter se aposentado antes, assim como o Gol G4 e mais ainda a tão falada Kombi. No entanto, com milhões de unidades vendidas, o Mille não vai deixar as ruas tão cedo. O melhor dessa renovação é que hoje o conceito que o Uno introduziu em 1984 já não é visto mais como aberração. Os “Unos” atuais são reconhecidos pelo público, mais preparado para aceitar produtos modernos. E essa é a melhor notícia.